I. A História de Santo Antão
O Senhor trabalhava verdadeiramente com Santo Antão, um eremita egípcio que viveu entre os anos de 251 d.C. e 356 d.C. Sua boa família o fez seguir à risca o que mandava a palavra de Deus. Depois da morte de seus pais, assumiu a casa, passou a cuidar de sua irmã mais nova e ia à igreja todos os dias. Seu maior questionamento era sobre as promessas vindas dos céus. Via os fiéis abrindo mão de tudo o que tinham e se intrigava com o quanto lhes era prometido se assim o fizessem. Por isso, ingressou na Igreja e passou a dedicar todo o seu tempo à vida ascética. Ficou conhecido como o Santo Antão do Deserto, pois, depois de partilhar todos os seus pertences com os mais humildes, deixou sua irmã com pessoas que realmente pudessem criá-la e foi viver em castidade no deserto.
O demônio, observando todo o comprometimento de Antão, não podia ficar de braços cruzados. Começou, então, a usar de todas as suas táticas para tentar corrompê-lo. Pregou sobre os prazeres da vida, o dinheiro, a mesa sempre cheia de comida, enfim, apresentou-lhe a austeridade e sugeriu que “o corpo é fraco e o tempo é longo”. Antão, por sua vez, nunca se rendeu e afastava todas essas tentações por meio de suas orações e reverência a Deus. Em uma de suas peripécias, o demônio vestiu-se de mulher para tentar seduzi-lo durante a noite. Tudo em vão.
Apesar de não ceder às tentações mundanas, Antão começou a sentir fortes dores em seu corpo, isso por conta de suas “lutas” com os demônios que, de todas as formas, tentavam fazê-lo pecar. Era uma espécie de psicossomatização. Todas as tentações reprimidas por Antão – por conta de seu temor e obediência a Deus – tinham que ser “aliviadas” de alguma forma e, nesse caso, eram vivenciadas pelas dores em seu corpo.
Em um de seus ensaios sobre a repressão – ou recalque -, Freud faz uma analogia com uma casa completamente fechada enquanto pega fogo. Em algum momento, o incêndio será tão intenso que precisará se dissipar para algum lugar. Nesse caso, as janelas explodiriam, o telhado pegaria fogo e as chamas se alastrariam, mais e mais. No caso da psique humana, o “incêndio” poderia resultar em neuroses, transtornos obsessivos ou, como foi o caso de Antão, dores pelo corpo.
II. Hieronymus Bosch e a obra
Jeroen van Aeken – mais conhecido por seu pseudônimo Hieronymus Bosch – foi um grande pintor holandês que viveu durante os séculos XV e XVI. Famoso pela sua incrível capacidade de inventar criaturas grotescas e fantásticas, Bosch pintou As Tentações de Santo Antão por volta de 1500 e imprimiu, de maneira muito consistente, o que poderia ser o inconsciente do Santo por conta de suas infinitas renúncias em ceder aos desejos mundanos.
Em artigo publicado no site Obvious, em 2012, Jane Alves de Souza conta que existem três versões da obra espalhadas pelo mundo. Além de uma versão do painel central do tríptico, encontrada no acervo permanente do Museu de Arte de São Paulo (MASP), há outro na Fundação Barnes de Merion, nos Estados Unidos e o tríptico completo no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) de Lisboa. As três versões são consideradas de autoria de Bosch.
A versão presente no MASP foi feita com a técnica de óleo sobre madeira e mede 128cm x 101cm. A data exata de sua produção não é conhecida, mas acredita-se que tenha sido feita entre os anos de 1495 e 1500, no auge do Renascimento. A obra foi doada ao museu por Assis Chateaubriand em 1954.
III. As Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch
Em 1880, um professor e historiador francês chamado Louis Petit de Julleville escreveu o livro Les Mystères. A obra era parte de outra maior, intitulada Histoire du Théâtre en France ou A História do Teatro na France. Em um trecho, Julleville aponta que existe uma grande relação entre a pintura de Hieronymus Bosch com o teatro. “O teatro”, conta o autor, “representa todos os cenários ao mesmo tempo; é uma imagem resumida no mundo. Nestas cenas [de As Tentações de Santo Antão] as múltiplas ações se relacionam; os atores viajam de um lugar a outro, o espectador habitua-se a abraçar com um olhar um vasto espaço”.
De maneira geral, a obra representa, sob a perspectiva de Bosch, uma espécie de personificação do inconsciente de Santo Antão frente a todas as tentações que ele recusa e, consequentemente, reprime em forma de desejos mal resolvidos. Todos os personagens apresentados na obra possuem características, de alguma forma, bizarras. Isso mostra toda a capacidade fantasiosa de Bosch. Seria como fazer a pintura de um sonho.
Na obra, Santo Antão encontra-se ajoelhado em posição de bênçãos bem ao centro, na entrada de um castelo em ruínas. Os quatro menestréis que o circundam têm características bastante peculiares. Um deles tem a boca em formato de clarinete. Dentro do castelo, nota-se Cristo crucificado no altar e Santo Antão, aparentemente, orando a Ele. Isso pode representar a maneira com que ele tenta espantar os demônios que o atormentam e insistem que se renda aos pecados.
Em torno de Santo Antão, algumas cenas bastante bizarras acontecem. De acordo com Hitner (1998), é em frente ao santo que se encontra aquela que talvez seja a mais enigmática dessas cenas: um homem com uma cabeça nas pernas senta-se em uma posição bastante curiosa enquanto está envolvido por um turbante. “Tudo parece bem neste contorno de traços compactos, porém extremamente regulares. A cabeça, bem feita, encara o eremita” (p. 38). Marcel Brion defende que trata-se de um autorretrato de Bosch.
Bax (1979) aponta que a figura é uma representação de um pobre diabo, uma espécie de mendigo. Isso por conta de sua perna estendida, seu traseiro nu e pela caneca sobre seus joelhos, que remete à expressão “pobre coitado, come sobre os joelhos”. Isso implicaria que o homem mais humilde usa os joelhos como mesa. A mulher ao lado de Santo Antão está com um vestido rosa e nota-se uma longa cauda saindo de seu vestido, o que lhe atribui um caráter diabólico, predominante em toda a pintura. Da porta ao lado, sai uma criatura verde segurando uma bandeja com uma coruja.
Mais abaixo, um homem com uma cartola preta e um manto vermelho encontra-se sentado. Aparentemente, é um mago, que aguarda sua fatia do banquete. À esquerda, um grupo de criaturas animalescas parece ir em direção à cena central da obra, liderados por um ser que aparenta ser uma bruxa. Ela tem troncos na cabeça e um chapéu no topo do tronco. De acordo com Hitner (1998), “o tronco, sinônimo de disputa, significa que essa personagem tem em mente a discórdia. O chapéu significa que a personagem não pode evitar as más consequências de suas ações ou não pode evitar o próprio pecado” (p. 40).
Se tomarmos a obra como uma espécie de retrato do inconsciente ou de um sonho de Santo Antão, cada elemento ou personagem simbolizaria uma estrutura da psique do próprio santo. Assim, Cristo, por exemplo, seria a representação de seu superego, uma estrutura opressora no que diz respeito à moralidade; a bruxa e os demônios à esquerda poderiam ser entendidos como o id, ou seja, os instintos mais primitivos de Antão. Ou até mais do que isso, poderiam representar a conformação de que não é possível viver evitando todas as tentações até o fim da vida. Logo, é como se Antão, inconscientemente, estivesse aceitando suas limitações e cedendo ao prazer.
Em primeiro plano, fora da plataforma de frente do castelo “nadam” um peixe-barco e uma criatura que aprisiona um homem. Hitner (1998) aponta que o peixe foi adotado na arte primitiva cristã como símbolo do cristianismo. Seguindo a ideia de que cada elemento é uma fatia da estrutura psíquica de Santo Antão, pode-se entender o homem preso como o próprio santo sendo punido pelo seu superego, representado pelo peixe. A ideia, talvez, tenha sido simbolizar que o bem e o mal sempre andam juntos, independente do esforço humano de tentar se desvincular de seus pecados.
Mais à esquerda inferior, fora do lago, nota-se uma tenda oca vermelha com uma criatura saindo dela. Hitner (1998) aponta que “Bax defende a ideia de que Bosch e seus imitadores, sempre que incluem esses tipos de ‘cascas de plantas ou frutas ocas’ em qualquer atmosfera exótica, estes têm um sentido desfavorável. A casca oca tinha também um símbolo de inferioridade na Idade Média: estas pessoas que fazem valer o corpo mais que a alma, assemelham-se àqueles que amam mais a casca de uma maçã do que a substância dentro dela” (p. 41). Desse trecho, pode-se deduzir que Santo Antão, apesar de demonstrar todo o seu comprometimento e devoção para com Deus, o fazia apenas “pela casca”, ou seja, por fora não cedia, mas internamente sofria com todos seus desejos reprimidos.
À direita inferior da obra, três demônios lêem um livro. Bax (1979) aponta que este livro foi tomado de Santo Antão, já que em muitas representações do santo, ele aparece com um livro em suas mãos. A ideia é “zombar” do eremita, recitando as orações que ele usava para se livrar dos demônios. “Através desse grupo, Bosch censura aqueles servos de Deus que desempenham suas funções eclesiásticas com limitado respeito. Por isso, são representados como bestas” (Hitner, 1998, p. 42).
Acima, no céu à direita, bizarras embarcações navegam pelos ares em direção a uma vila que está incendiando, na extremidade superior esquerda. Ali, demônios são os responsáveis por tocar fogo na vila. Isso pode ser uma representação simbólica do que aconteceria com Santo Antão caso ele cedesse às tentações dos demônios que cruzaram seu caminho. Pelo menos de acordo com sua concepção cristã, ceder às tentações dos demônios seria o mesmo que incendiar sua própria psique.
Sustentando a ideia de que Santo Antão não se rendeu às tentações demoníacas e que suas dores eram de origem psíquica, nota-se na obra que nenhum dos demônios o ataca fisicamente. Assim, todo o sofrimento, ainda que sentido pelo seu corpo físico, é referente à alma. Pode-se dizer que Bosch buscou simbolizar os desejos carnais de Santo Antão através das figuras de demônios. Analisando as vestimentas de todos os personagens que compõem a obra, nota-se uma grande extravagância. Isso pode ser entendido como uma representação da luxúria que, segundo os religiosos da Idade Média, era a mãe de todos os outros pecados.
Thiago Picolo é psicólogo pela PUC-Campinas e graduando em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero.